Habitar o Limiar
Nas obras de António Soares dos Reis propostas como temática de reflexão, a personagem retratada, Firmino, aparece com três diferentes nuances: doce, guerreiro e pensativo. Foi precisamente pela aura das representações de Firmino nessas expressões tão diversas que me interroguei se o seu trabalho de porteiro não influenciava a sua contínua transformação. Refletindo sobre o seu papel de porteiro, comecei a investigar o conceito de ‘limiar’ e como o seu trabalho o colocava sempre numa zona de contacto entre o exterior e o interior.
Os limiares configuram-se como uma passagem ilimitada ou um espaço não delimitado, espaços liminares, indecisos, ambíguos, instáveis, mutáveis, contraditórios, onde dois mundos diferentes se encontram. É nos lugares de limiar que “encontraremos aquelas palavras com as quais falar de nós mesmos e dos outros. E explorando essa hibridade, esse ‘terceiro espaço’, podemos eludir a política da polaridade e emergir como outros de nós mesmos” (Bhabha H. (1988), The Commitment to Theory – New Formations).
Este conceito reflete a experiência de Firmino, que, como porteiro, vivia constantemente num lugar de interação e transformação, de relação com o outro que conduz a um condicionamento recíproco e a um contínuo ser “outro de si mesmo”. No encontro relacional, A e B mudam a si mesmos num jogo que nada mais é do que repetir e permanecer ativamente dentro do encontro relacional.
Como artista artesã, encontro-me também constantemente num lugar de limiar. No trabalho com a matéria, modifico e sou modificada, num processo recíproco que impõe limites físicos e os transcende. No limiar institui-se uma zona de transformação: uma passagem de uma condição a outra, onde, no entanto, nenhuma dessas condições é pressuposta ou definível de uma vez por todas. O limiar é um espaço aberto, habitado por uma multiplicidade de singularidades, onde as coisas se apresentam como ‘possíveis’.
Este conceito é expresso através do objeto proposto “Habitar o Limiar”, em que a matéria aparece num estado bruto de possibilidades abertas. De um lado é representada uma porta, lugar liminar; do outro, um ponto de partida A que, através de percursos multidirecionais, alcança três pontos de suspensão, símbolo de possibilidades infinitas de ser.
“Habitar o Limiar” é, portanto, uma homenagem à contínua transformação e ao potencial ilimitado que reside em cada limiar. Convida o observador a contemplar o seu próprio percurso de transformação, reconhecendo que cada contacto com o exterior de si traz a possibilidade de um novo começo e de uma nova forma de habitar o mundo.
Prata, porcelana, zircónias
60 x 50 mm
English
Dwelling on the Threshold
In the works of António Soares dos Reis proposed as a theme for reflection, the depicted character, Firmino, appears with three different nuances: sweet, warrior, and thoughtful. It was precisely from the aura of Firmino’s representations in these diverse expressions that I questioned whether his job as a doorman influenced his continuous transformation.
Reflecting on his role as a doorman, I began to investigate the concept of ‘threshold’ and how his work always placed him in a zone of contact between the exterior and the interior.
Thresholds are configured as an unlimited passage or an undefined space, liminal spaces, undecided, ambiguous, unstable, mutable, and contradictory, where two different worlds meet. It is in the places of the threshold where “we will find those words with which to speak of ourselves and others. And by exploring this hybridity, this ‘third space’, we can elude the politics of polarity and emerge as others from ourselves” (Bhabha H. (1988), The Commitment to Theory – New Formations).
This concept reflects Firmino’s experience, who, as a doorman, constantly lived in a place of interaction and transformation, of relationship with the other that leads to mutual conditioning and a continuous being “other than oneself”. In the relational encounter, A and B change themselves in a game that is nothing more than repeating and actively remaining within it.
As an artisan artist, I also constantly find myself in a place on the threshold. In working with the material, I modify and am modified in a reciprocal process that imposes physical limits and transcends them. On the threshold, a zone of transformation is established: a passage from one condition to another, where, however, none of these conditions is presupposed or definable once and for all. The threshold is an open space, inhabited by a multiplicity of singularities, where things present themselves as ‘possible’.
This concept is expressed through the proposed object “Dwelling on the Threshold”, in which the material appears in a raw state of open possibilities. On one side is represented a door, a liminal place; on the other, a starting point A that, through multidirectional paths, reaches three ellipsis points, a symbol of infinite possibilities of being.
“Dwelling on the Threshold” is a tribute to the continuous transformation and unlimited potential in every threshold. It invites the observer to contemplate their path of transformation, recognising that each contact with the outside of oneself brings the possibility of a new beginning and a new way of inhabiting the world.
Silver, porcelain, zircons
60 x 50 mm
Benedetta Grasso
Benedetta Grasso, ceramista e ourives, é co-fundadora da associação MACS, um espaço de trabalho partilhado para artistas e artesãos. Nascida em Milão, em 1994, formou-se em Literatura e Línguas Estrangeiras com uma tese sobre Teatro Social.
Durante o primeiro confinamento, em 2020, dedicou-se à cerâmica, criando a TOBE, que agora inclui também a arte dos metais. O projeto foca-se na simplicidade, estética, sustentabilidade e reciclagem de materiais.
Apaixonada por poesia, natureza e artesanato, Benedetta valoriza a autenticidade e a expressão pessoal.
English
A ceramist and goldsmith, Benedetta Grasso co-founded the association MACS, a shared workspace for artists and craftsmen. Born in Milan in 1994, she graduated in Literature and Foreign Languages with a thesis on Social Theater.
During the first lockdown in 2020, she devoted herself to ceramics, creating TOBE, including metalwork. The project focuses on simplicity, aesthetics, sustainability, and material recycling.
Passionate about poetry, nature, and craftsmanship, Benedetta values authenticity and personal expression.